Para que sejam úteis, têm os pedais de andar às avessas um com o outro. Estica-se um deles num breve momento cimeiro enquanto o outro enterra-se num esforço descendente. Mesmo quando se encontram ao mesmo nível, apontam direcções diferentes. Ora que um olha esforçado para a frente enquanto o outro espreguiça o caminho que ficou para trás. Nunca se chegam a encontrar e nenhum serviria o seu propósito sem o outro, o seu oposto. É a única forma de colocar a bicicleta em movimento, por oposição. Também são assim alguns homens que, nunca se encontrando, vão esforçando o caminho numa mesma direcção, deixando como legado mais uma pedalada no trilho que o Destino vai desenhando nas subidas do Tempo.
Pensava nisto o jovem ciclista e comerciante, enquanto misturava o cheiro da urze com as suas reflexões. Os artefactos de ouro que transportava e que tantas pedaladas já tinham feito, mesmo antes dele lhes emprestar esta derradeira viagem na montanha, eram também legados de um destino traçado há muito. Era esse mesmo ouro que era brutamente extraído lá longe, em terras africanas, por mineiros enlameados que conheciam o cheiro verdadeiro da terra. Era esse que se via transportado nos grandes navios das fotos dos jornais, que partiam de mares remotos nos largos acenos dos marinheiros e chegavam em apertos curtos na estiva do rio. Era esse o mesmo que voltava a nascer quando trabalhado em oficinas nobres de mestres joalheiros e ourives da região. Esses artesãos, seres nascidos de monóculo feito olho, vislumbravam as filigranas dos dias com as suas habilidosas mãos e esculpiam nos indistintos bocados de minério a forma artística que o mundo teria se fosse um apetrecho de pendurar ao pescoço.
A semana prometia deixar como legado visitas a cinco destinos e uns tantos, muitos, quilómetros de solidão. Não prometendo, dava a esperança de se vender mercadoria e fazer negócio. Esperança de ser compra amorosa e de impulso. Esperança de celebrar o nascimento de mais uma alma disposta a trepar a escada da vida ou de comemorar o aniversário de alguém que tivesse subido mais um degrau dessa escadaria. Com muita sorte, chegaria a tempo da decisão de uma subida a dois e talvez até encontrasse um casamento. Ou um baptizado, onde os padrinhos quisessem dourar a subida prometida ao reino dos céus com ofertas que tivessem subido da vila à montanha numa bicicleta. Por alguma razão não totalmente entendida, o ouro e as jóias eram o presente mais previsível para marcar todos estes acontecimentos. Coisas incompreensíveis mas não desconhecidas do género humano.
De quando em quando, acontecia que alguém tivesse atingido o fim da escadaria e se tivesse precipitado para o além. Seja o termo “além” o que pense de diferente cada um de nós, sendo certo que, o que for, será igual para todos. A morte é um gume que cerceia aos vivos o gosto de dar, por não haver a quem oferecer. Pelo contrário, provoca nos mortos uma irrevogável generosidade e, partindo, distribuem os seus pertences terrenos aos futuros defuntos, incluíndo as jóias e o ouro. Em acontecendo estar de visita a uma aldeia após tão funesto acontecimento, não raras vezes se via o “Mil à Hora” no papel de avaliador e comprador desses despojos. Na vila, talvez conseguisse um melhor preço por eles.
Era assim que a fortuna dos acontecimentos em vida de uns e a falta da mesma na morte de outros, sendo opostos em qualidade, funcionavam como os pedais que moviam o pequeno ganha-pão do “Mil à Hora”, ajudando-o a subir a sua escadaria da vida. Uma escadaria em que os degraus da semana eram pedalados com esforço e trilhados com determinação por entre caminhos montanhosos, abrigados sob o céu caprichoso das estações, numa rotação de dias e noites. Dias duros em que apetecia viver. Noites solitárias em que era fácil sonhar.
(enquanto a inspiração e a motivação durar, continuará...)