sábado, dezembro 02, 2006

Pedalando no tempo (II)

(continuação de)

A vila já se antevia por entre os sumptuosos castanheiros. Os raios de sol que os acobreavam, numa moldura de luxo matinal, noticiavam que esta acordava. Não eram só os raios. A passarada também avisava, voando e poisando nos ramos das árvores que torneavam o trilho da montanha para a vila. Na direcção oposta, em direcção ao horizonte, voavam os cabos do telégrafo, acompanhando a estrada asfaltada e tiritando notícias que mantinham este ponto do mundo ligado ao novelo da actualidade. Das montanhas não existia fio para esse novelo. Bastavam-se na sua própria actualidade, tal como todos os que lá viviam.
Ao fundo da encosta, entre o casario de pedra pontilhado aqui e acolá de casas pintadas, abria-se uma clareira. A praça da vila era um espaço onde confluíam pequenas artérias desenhadas de mão livre, arrastando ruas de granito. Tinha como esquadria uma linha de edifícios baixos onde, quase sem excepção, o piso térreo era ocupado por comércio. No centro, um pequeno monumento comemorava uma qualquer efeméride da terra, com dois homens fardados olhando para a direcção da igreja, num dos topos. No outro topo, um fontanário chorava água nascida na montanha para matar a sede das casas cá em baixo.
Entre as pessoas que chegavam à praça, entre aqueles que vinham trabalhar e aqueles que se vinham fornecer, chega uma bicicleta pasteleira acostumada a estas paisagens. Todas as semanas, às segundas-feiras pela manhã, era esse o destino do “Mil à Hora”. Mais concretamente a ourivesaria do “Marialva”, esse personagem deslocado das lezírias para os montes mas que mantinha os arrozais nos seus olhos azuis, infinitos como a água que dorme a espelhar o rio no céu. Com os seus setenta anos de idade, era um homem que oferecia à sua experiência de vida a mesma genica que as crianças oferecem a uma primeira brincadeira. Existiu, entre o “Marialva” e o “Mil à Hora”, aquela empatia típica das almas irmãs mas não gémeas desde o momento em que se conheceram. Movia-os o negócio e a vida. Encontravam-se no estabelecimento antes deste abrir portas e iam à taberna que ficava duas portas ao lado para beber uma xícara de café ou de cevada fumegante com broa de milho ainda morna. Era no “mata-bicho” que se ultimavam preços e mercadorias. O “Marialva” deixava levar à consignação um quinhão de peças de ouro para serem vendidas de aldeia em aldeia, durante a semana. Cobrava um preço de amigo que permitia ao “Mil à Hora” acrescentar uma margem negocial para pagar as pedaladas e o tempo que passava por fora, na venda. O fecho de contas era feito no sábado, voltando à mesma xícara. Um pagava a mercadoria que havia vendido e entregava a que não tinha tido saída. O outro recebia e pagava a refeição, dizendo umas palavras de encorajamento ao negócio. Que o negócio estava difícil, como sempre esteve e sempre estará. Eram conversas tidas com o mesmo ritmo com que se pedalava, na sofreguidão de tempo de que ambos padeciam. Quem os ouvisse, eram como dois cavaquinhos a tocar na praça, abreviando naquela meia hora as pautas de negócio que regiam a orquestração da música da semana.
Lá fora, nos montes, os pássaros continuavam a voar sobre os castanheiros indo mais além, onde os pinheiros esticavam os seus braços às nuvens, sem as agarrar. O som da praça, que a esta hora já fervilhava de gente, ainda conseguia subir esses primeiros arvoredos. Mas quando os montes se transformavam em montanhas, estas eram uma praça de pedras e arbustos, com uma ou outra árvore solitária, onde apenas se ouvia o som do vento e da água que corria sem precisar de fontanários. Não era necessário fervilhar por ser início de semana. Afinal, nem a Montanha nem o Tempo sabem o que isso é.

(quiçá, ainda continue...)

10 comentários:

Lara disse...

É primeira vez que visito o teu blog... escreves muito bem sabias? Pois calculo que saibas ehehehehe

Obrigada pelas tuas visitas ao meu blog... pena seres daquele clube vermelho :)
joking

vou voltar de certeza

beijo

Etienne disse...

Amigo Calvin, retire o quiçá...


( As suas palavras além de coloridas e móveis... têm cheiro, sabia?...)

Mais perfume é o que se pede.

E fica um abraço.

AGRIDOCE disse...

Comecei a olhar para este conto, que "ainda só vai" em 2 episódios, com outros olhos. E já eram bons.

Fez-me recordar alguém que conheci! Emocionei-me.

Da primeira vez que cá vim visitar esta continuação, não consegui deixar o meu comentário. Não fiquei em condições de o deixar.

Venham os próximos episódios.

Lyra disse...

A tua forma de escrever tem o dom de nos transportar para o interior do conto.
Quase se consegue ouvir a água a correr e o chilrear dos pássaros.
Sabe-me a um Outono de tempos idos...
Quero mais ;)
Bjos*

Irritadinha disse...

Esse quiçá... era melhor só "continua"
beijo

Anónimo disse...

Meu caro Calvin o menino escreve muito bem!! Os meus parabéns!!
Tenho mesmo de calçar as minhas sabrinas urgentemente!! :-DDDD
beijocas

Pedro disse...

Alguém escreveu num comentário que se surpreendia com a graça que colocas a tua escrita em diferentes registos. Neste conto encontrei um estilo de descrição tão rico, tão Eça que só consigo carregar no botão de "Publish" com orgulho.
Orgulho por tanto que partilhámos em estradas de montanha, de aldeias ou em estradas onde viajam fios de telégrafos. Orgulho pelos cafés que bebemos e pelas pedaladas de esforço dividido.
Repito (e que sirva de incentivo): eu compro o teu livro!

Sofia.S disse...

Quiçá?????
:)lol

Passei para te deixar um beijinho... o fecho do ano não me dá espaço para grandes bloguices!

Aninhas disse...

Bahhh claro que és tem acento grave, né...(dahhh foi erro de teclado!)
Única e caríssimos são algumas de tantas palavritas que corrigiste...
:)

Aninhas disse...

Sou só eu... ou o Agri é "memo memo memo" fã do Calvin??!?
Ó homem propoe-te para Hobbes, vais a uma audição e pode ser que sejas escolhido!
:)

(vou-me com a certeza de não tarda estar a levar na cabeça de um... e do outro...)

;-)