terça-feira, novembro 28, 2006

Pedalando no Tempo (I)


Chamavam-lhe o “Mil à Hora” pela sua azáfama no respirar, no olhar, no fazer. Era um jovem que não tinha tempo a perder. Um tempo que lhe parecia sobejar menos a ele que aos outros. Esse tempo que não era muito. Nunca é. E teima em estar sempre a fugir desse outro tempo que é uma vida.
Ao começar da semana, quando os primeiros raios de alvor pincelavam o céu ruborizados, talvez pelos pecados da noite que passara, o “Mil à Hora” já estava pronto a sair em direcção à vila, na sua bicicleta pasteleira. Tinha sido comprada em segunda mão com os trocos desavindos de dias de poupança com sabor a fome. Dias onde o pós-guerra e um país mirrado e solitário deixavam a lição analfabeta e dura de que a riqueza só se cria poupando. O caminho que rondava o amontoado de casas em que se albergavam uma dúzia de almas dos rigores do tempo, estreitava em direcção ao ribeiro. Tinha a largura suficiente para passar uma junta de bois, mastigada nos extremos com precaução para não cair às águas num dos lados ou entalar o eixo da roda nos ramos baixos das árvores do outro. Era esse o portão de entrada para a aldeia. Ladeado com cabelos de junco e uma textura de casca de árvore morta que se sentiam no restolhar dos pneus que rodavam ao som do pedal. A partir daí eram montes, pedras e pedragulhos, o cheiro da natureza que indiciava a estação do ano. O perfume floral na Primavera, o doce dos arbustos e dos insectos no Verão, a humidade da terra no Outono e o frio cortante, que também se cheira, nos dias de Inverno onde ainda era possível fazer este caminho.
Estes cheiros existiam e duravam de forma lânguida, destoando do fervor do biciclo que rasgava os montes, contando o tempo em pedaladas. Segundo a segundo, como ele o merecia ou parecia merecer. É essa uma das cortesias que a Natureza tem com o Homem. Deixa-o agitar-se freneticamente nas rodas do tempo, sabendo da sua efémera e mortal presença e satisfazendo a sua sede de vida contada em dias, em horas, em segundos. A Natureza fala com o Tempo na sua verdadeira dimensão, numa escala que não existe em palavras humanas. Riem-se ambos com amizade de nós, humanos, exalando cheiros, cores e ruídos. Tudo a seu tempo. Como sempre foi.
(este texto é capaz de ter continuação...)

5 comentários:

AGRIDOCE disse...

(este texto é capaz de ter continuação...)

Eu fui logo à procura do resto do texto, por isso, nada de fraudes à audiência!
Volto dentro do tempo que a minha pasteleira me permitir.
Até já.

Lyra disse...

Muito lindo o teu texto, mas deixa na boca um travo a melancolia... nem sei bem dizer porquê.
Vou aguardar pela continuação.
Bjos*

Pedro disse...

Gostei do texto, também me soube a melancolia, que apreciei. O teu blog tem a força da paixão que colocas na vida, por mais vidas que se viva :) Quem tem a caneta que escreva. Foi o que fiz!
Terminarei os comentários na sequela deste conto. Até lá, aguardemos (saber esperar é uma virtude)

Rafeiro Perfumado disse...

Espero bem que tenha, pá.

Anónimo disse...

.... fico à espera da continuação!