quinta-feira, novembro 23, 2006

SS Thistlegorm


Começa de madrugada, com o transporte ondulante e o som de garrafas de ar comprimido a saudarem-se em abraços de metal na entrada do barco. É uma azáfama precoce, que nos tenta acordar os sentidos para melhor saborearem o que o dia nos reserva. O deck superior é uma enorme almofada de sono, com lençóis de toalhas de praia que nos enroscam carinhosamente e são armadura para a intensa brisa matinal do Mar Vermelho. Uma brisa que nos vai despedindo Sharm El-Sheik e apresentando uma costa mais larga, rumo a sul.

Há pinceladas de um sol que já se espreguiçou e se levanta de chinelos pelo céu, começando a queimar quem se exponha em descuido nestas latitude. Passadas estas horas de viagem, o cheiro do café e do pequeno almoço na cabina do piso inferior convidam ao repasto matinal. É também sinal que chegámos à entrada do golfo de Suez, esse irmão desavindo de um outro, o de Aqaba. Estes dois golfos enclausuram o Sinai entre águas turquesas, onde a aridez da superfície das montanhas e do deserto contrasta com a vida exuberante das suas profundezas.

Não fossem os outros dois barcos de mergulho que ali estavam fundeados e aqui pareceria ser mais um local igual a todo o resto do mar. No entanto, aquele era o nosso destino. Um destino breve de apenas um dia para nós, um destino eterno para o SS Thistlegorm que ali pereceu no ano de 1941, em agonia, vítima de um avião nazi que regressava à base com bombas em excesso.

Amr, o nosso guia egípcio, mergulha antes de todos para se assegurar que um cabo-guia estaria seguro à balaustrada da carcaça prometida mas ainda invisível. Um a um, fomos entrando em passo de gigante e descendo. A início é apenas o azul. Aquele azul que devora e nos arrasta os olhos, intrigante e sedutor. E depois ele aparece, estendido nas areias, destroçado a um terço da popa, onde o metal lhe permite uma rotação para bombordo. Mais uma vez, entendo porque os ingleses tratam os barcos no feminino. Porque não são corpos másculos, mas sim silhuetas femininas que torneiam as ondas na superfície com a mesma elegância que jazem no fundo. Numa cama de areia. Convidando. Ali estava ela: SS Thistlegorm!

Há sítios onde o tempo se move em caminhos diferentes dos do dia a dia. Aqui é um desses sítios. Imóvel e solene, este destroço de 419 pés de calado (128m) e de 59 pés (18m) de boca, pesando cerca de 5.000 toneladas, abriga vida marítima em danças de peixes à volta do convés. Lá dentro, nos porões, espera-nos uma carga com camiões Bedford, motas BSA, espingardas, obuses, pequenas locomotivas e toda uma panóplia de fornecimentos exigidos para alimentar o monstro da Segunda Guerra Mundial. Circundamos o casco, com maior fervor na direcção proa-popa porque a corrente se faz sentir. Na direcção inversa, dobrando a popa inclinada nestes 30 metros de profundidade e prestando homenagem ao hélice, basta-nos deixar flutuar e viver o cenário.
O interior reserva uma visita à zona de cabinas, sem esquecer o quarto do Comandante. Os corredores. Os porões. O castelo de proa.
E somos peixes. Entendemos porque brincam eles à apanhada entre as escadas e nos convés. Tornamo-nos parte da cena por instantes. E, quando pela ausência de guelras, a reserva da garrafa nos obriga a voltar ao ar puro da superfície, subimos pelo mesmo cabo que antes nos afogou num sorriso descendente. Morremos como criaturas marítimas e regressamos para poder contar como é ser peixe e perceber porque não precisam eles de falar...

10 comentários:

Irritadinha disse...

Muito bem... ora pois gostei. É importante sairmos da posição humana egocentrica e perceber o que se passa noutras dimensões em outros ambientes... uma viagem interessante e muito rica!

beijo

Aninhas disse...

Fiz um post enorme... deve tar pejadinho de erros mas pus no final uma firewall!
Aha!!!
;-)

Etienne disse...

« Para poder contar como é ser peixe e perceber porque não precisam eles de falar...»

Todo o post é de uma beleza ritmica impressionante. Talvez para terminar assim, numa apoteose.

Os meus sinceros parabéns, Calvin.

AGRIDOCE disse...

"... e regressamos para poder contar como é ser peixe e perceber porque não precisam eles de falar..."

... ou utilizam, até, uma fala superior à humana, mais simples, mais afável. Quem sabe?

Gostei! Mas o que não gosto mesmo é ficar tanto tantos dias a ler o mesmo post, sem alternativa.

Ana disse...

gostei bastante, parabéns :-)

Rafeiro Perfumado disse...

Grande experiência, sim senhor... melhor só mesmo a tua descrição.

Mar disse...

Deve ter sido, com certeza, uma experiência belíssima. Sente-se através das palavras.

Aninhas disse...

Surpreende-me a diversidade de registos em que te podemos encontar, Calvin.
Boa.
Bjks
:-)

Lyra disse...

Belíssima descrição... quase tenho a sensação que fiz a viagem contigo.
E eis aqui transmitido de forma brilhante o fascínio do mar... que nos envolve e nos leva a não querer mais regressar.
Em resposta, para breve ;)
Bjos doces*

Pedro disse...

Obrigado Calvin, por nos teres levado contigo nesta viagem. Melhor que a tua descrição textual é o privilégio de a ouvir ao vivo, com menos palavras e com (ainda) melhor entendimento da emoção que é sentir a nossa pequenez no mundo simples e belo abaixo da linha da superfície ;)

Unindo o indicador ao polegar...está-se bem!