terça-feira, outubro 17, 2006

Pensamento à linha

Era uma daquelas noites onde o calor, miasmático, se entranhava intensamente na mente. Mais do que no corpo que transpirava para se desfazer das temperaturas do dia que havia passado. A luz branca do farol, fleumaticamente intermitente, avisava ao horizonte que a costa começava ali. Lembrança valiosa para aqueles que chegavam pelo mar e piada irónica a quem se via preso em terra, estando tão perto do seu fim. O vento definia o estado das coisas, recordando a sua existência por não existir, forçando o marasmo à turbulência intrínseca da Natureza. Ao longe, um casal de luzes de navegação encaminhava-se para a entrada da barra do rio. Verde e vermelha, um casal inseparável e feliz vivendo na ordem que só as convenções sabem ter. Verde e vermelha, juntas, iluminando diferentes um só destino. Era uma daquelas noites onde o calor, miasmático, matava o tempo com contornos de quem sabe que uma boa tortura é feita devagar e que uma boa vítima é aquela que não se esgota antes do desfalecimento absoluto.

E ele, todo ele era linha e cana, atirando ao infinito o isco das ideias que lhe iam surgindo. Entre ele e o rio de dúvidas que corria em direcção ao mar, apenas o paredão, apenas umas rochas envergonhadas e desnudas pela maré baixa. O tempo passava, escorrendo por esse fio que salvava uma suicida bóia fosforescente, pingando a rotina do dia no fluxo da maré. E o seu peixe, tal como o pensamento, não fisgava.

Não era a pesca em si que o trazia ali. Ali onde os peixes não eram presas porque não se caçavam, apenas desistiam da vida e, num último gesto altruísta para com o pescador e o seu balde plástico, engoliam o anzol. E não prestavam para mais que isso. O que o trazia à beira-rio era a justificação do tempo para si. Vou pescar! – dizia. E assim todos sabiam que iria estar sozinho e não o incomodariam. Se fosse fazer nada, o que diria aos outros? Poucos entendem o que é fazer nada. Especialmente se se faz nada sozinho. E isto pese embora o facto de existirem coisas que todos fazemos apenas para conseguir criar razões para realizarmos outras, as que não realizamos primariamente.

- Picou!- proferiu mais por instinto do que por reflexão consigo próprio. Picou o peixe e o tal pensamento que o tinha arrastado para lá em simultâneo. Agora tinha que retirar o anzol aos dois.

Na altura, tudo parece evidente, fácil, simples. Mas acontece que a força das idéias fraqueja com a análise do espírito. O próprio espírito tende a perder força quando sujeito ao tratamento do tempo. E tanto tempo que é uma noite...

E é por isso que agora, decorrida a noite, afoga-se o mesmo calor numa hierática caneca de cerveja que também sabe torturar sozinha, mas docemente. Para o Diabo com as ideias! Mais vale lançá-las de novo ao rio.

E assim foi!

Sem comentários: